– Pra quê o dia da consciência negra se não há dia da consciência branca?
– Colocar um dia no calendário para os negros só demonstra vitimismo. No dia em que pararmos de falar sobre negros e brancos o racismo desaparecerá.
Todos os anos eu escuto esses tipos de perguntas e comentários, a maioria deles proferidos da boca de pessoas que acham que debater o racismo ou falar sobre o papel do negro na formação da sociedade brasileira e sua marginalização é mimimi ou no mínimo desnecessário.
De imediato, é preciso esclarecer que o dia da consciência negra é para lembrarmos não apenas de Zumbi de Palmares[1], último líder do maior quilombo do Brasil e símbolo da resistência negra, mas também dos negros que lutaram pela abolição da escravatura[2] nesse país (muitos deles apagados pela história, cuja narrativa teve como único norte e referencial os brancos), é para debatermos a pedagogia racista das escolas (que além de reproduzir nas salas de aula o racismo estrutural e social, também mitiga do currículo escolar os negros que foram ou são protagonistas e que poderiam se tornar referenciais para muitas crianças e adolescentes negros[3], muitas das quais ainda sofrem com ofensas e hostilizações vindas por colegas de sala e professores), é para nos rebelarmos com o fato de que apesar de mais de 54%[4] da população ser afrodescendentes, o Estado[5]e as estruturas de poder são majoritariamente brancos, é para escancararmos o genocídio dos jovens negros e gritarmos com dor que a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado nesse país[6], é para exigirmos mudanças na disparidade de renda entre negros e brancos[7], é para debatermos o encarceramento dos 600 mil presos, quase todos negros[8], é para nos entristecermos com o aumento da mortalidade de mulheres negras[9]. Em suma, o dia da consciência negra é uma data que nos permite parar, pensar e escancarar o racismo brasileiro: sutil e perverso e desmascararmos a falsa democracia racial brasileira, uma vez que na paisagem política, cultural e social, os negros ainda ficam à sombra.
Em 2018 ainda é preciso lembrar que embora algumas pessoas encham a boca para dizer que todos nós somos iguais e que o racismo é “coisa da nossa cabeça” ou “coisa de gente fraca”, a humanidade ainda classifica impiedosamente os seres humanos e mantem com os negros uma relação de não reciprocidade, garantindo de maneira perversa e sutil a magnanimidade dos brancos e a marginalização dos negros.
Infelizmente algumas pessoas ainda se recusam a admitir a necessidade de uma data para comemorarmos a resistência dos negros e lamentarmos o nosso passado escravagista que castrou e atrofiou a humanidade de milhões de pessoas, uma data para ressaltarmos com imenso orgulho o tanto que há da cultura africana em nossa cultura brasileira. Os brasileiros que não compreendem o dia 20 de novembro possuem inconscientemente ou não a imensa vontade de escamotear a influência da negritude em nossa cultura e ignoram a absurdidade do passado brasileiro, uma vez que nem sempre o negro foi visto como semelhante e igual e teve sua dignidade castrada.Por quase quatro séculos os negros foram considerados no Brasil um ser a parte, excluídos de cidadania e humanidade plenas e mesmo quando foram libertados no final do século XIX, nenhuma recompensa e reconhecimento foram dados aos antigos escravos.
Os brancos não precisam de um dia para ser lembrados, pois nunca foram esquecidos, nunca tiveram sua identidade subalternizada. Quem um dia não foi reconhecido como plenamente humano foram os negros. E mesmo 130 anos após a abolição ainda não há igualdade de partilhas e de direitos.
Quando nos voltamos para a história da humanidade sempre nos deparamos com os negros colocados na ordem da diferença, daquilo que é estranho (exótico) e não na ordem do que é universal, como são os brancos. Apartados do universal (da supremacia branca e eurocêntrica), o negro é renegado politicamente, moralmente e culturalmente. O preço desse exílio os afrodescendentes sofrem até hoje.
Sim, ainda precisamos de uma data especifica no calendário para relembrarmos que os afrodescendentes tem um passado glorioso e de muitas lutas, que há uma epistemologia (um conhecimento, um saber) que foi apagada pela hegemonia eurocêntrica e a qual é preciso resgatar e valorizar.
Além disso, essa data nos permite comemorar os avanços conquistados pelos ativistas do movimento negro e as ações afirmativas conquistadas: a lei 10.639/2003 sobre a obrigatoriedade do ensino sobre História e Cultura Afrobrasileira nas escolas e que faz com que esta mostre a contribuição da história e da cultura africana na formação do Brasil. Esse ensino é importantíssimo, pois assim os alunos aprendem que os negros têm um passado e uma história, ou seja, não são sujeitos sem história, como afirmava o filósofo alemão Hegel, e esta começa muito antes deles serem escravizados no Brasil. É uma data importante para reforçarmos a Lei 12.288/2010, a qual estabelece as diretrizes e políticas públicas voltadas à correção das desigualdades sociais. E também argumentarmos sobre a Lei 12.711/ 2012 e a importância das cotas raciais no ensino superior.
Sim, precisamos de uma data no calendário enquanto os noticiários colocarem os negros sempre como um ser menor, como os vilões-bandidos-marginais dos quais a população “de bem” deve se proteger, destruir, violar, humilhar e aviltar.
Sim, enchemos a boca para dizer que somos iguais, que não somos racistas, mas ainda rimos das piadas racistas. Afirmamos que o racismo não existe, mas fechamos os olhos para não ver que ele está em toda a parte, em todas as instituições.
Sem o debate e a destruição do preconceito racial, com a tentativa de negação da importância do dia 20 de novembro, essa igualdade é apenas verborrágica.
Luanda Julião é Doutoranda em Filosofia Francesa Contemporânea pela Universidade Federal de São Carlos. Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de São Paulo. Professora de História e Filosofia na Escola Estadual Visconde de Itaúna.
[1]Considerado o maior herói do movimento negro brasileiro, Zumbi foi o último líder do Quilombo dos Palmares e chefiou a resistência contra os portugueses, a qual durou 14 anos. Foi assassinado em 20 de novembro de 1695. Essa data só foi descoberta em 1970 e em 2003 incluída no calendário escolar.
[2]Houve uma repressão aos movimentos abolicionistas protagonizados pelos próprios afrodescendentes, escravizados ou não. A elite, com medo de uma revolta dos escravos, buscou sufocar o movimento dos negros e deu um jeito de protagonizar o processo de abolição.
[3] Aqui, eu cito alguns: Dandara dos Palmares, Luiz Gama, José do Patrocínio, Milton Santos, Abdias do Nascimento, André Rebouças, Teodoro Sampaio, Sueli Carneiro, AchilleMbembe, Angela Davis, ChimamandaNgoziAdichie, Frantz Fenon, Conceição Evaristo, Milton Santos, Carolina Maria de Jesus, Djamila Ribeiro, Nataly Néri e muitos outros.
[4]Segundo o IBGE de 2016, 46,7% da população se autodeclarou parda e 8,2% se autodeclarou preta. 44% se definiram como brancas.
[5]Segundo a pesquisa do Conselho Nacional de Justiça feita em 2014, 82,8% dos magistrados brasileiros são brancos. Nos tribunais superiores 89,9% são brancos.
[6] A possibilidade de jovens negros serem assassinados no Brasil é 2,88 vezes maior do que a de jovens brancos, segundo a 5ª edição do índice de Homicídios na Adolescência divulgados pela UNICEF-Brasil em 2017.
[7] Dados da Pesquisa Mensal de Emprego do IBGE mostram que um trabalhador negro no Brasil ganha em média pouco mais da metade (57%) do rendimento recebido pelos trabalhadores de cor branca. Em termos numéricos, trabalhadores negros ganham em média R$ 1. 374,79 e os trabalhadores brancos em média R$ 2.396,74.
[8]Aqui sugiro a leitura da obra de Juliana Borges: O que é encarceramento em massa?
[9] Inúmeras pesquisas mostram que a mulher negra continua em último lugar na escala social e é aquela que mais carrega as desvantagens do racismo no Brasil. Ela apresenta menos nível de escolaridade, trabalha mais e ganha menos e as poucas que conseguem ascender socialmente tem menos chances de se casarem.
Publicado em: http://www.justificando.com/author/luanda-juliao/
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