quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Deus após a morte


BRUNO GHETTI

ESPECIAL PARA A FOLHA

Enquanto concebia o roteiro de "O Garoto da Bicicleta" (2011), o diretor belga Luc Dardenne, 58, teve sua mente invadida por pensamentos filosóficos. O filme (codirigido pelo irmão Jean-Pierre, seu parceiro artístico) mostra o encontro entre um menino abandonado pelo pai e uma cabeleireira que, sem razão explícita, resolve cuidar dele, dando-lhe amor e proteção.

Intrigado pela natureza dessa relação desinteressada entre uma pessoa e o "outro", por aquilo que faz alguém amá-lo e olhar por ele, Dardenne lançou-se a uma série de questionamentos sobre as relações humanas. Depois de traduzir suas conclusões em imagens (no longa), decidiu ir além: desenvolveu-as em "Sur l'Affaire Humaine" [Seuil, 190 págs., R$ 48], lançado no ano passado na França.

A partir da noção nietzschiana da "morte de Deus", Dardenne discorre sobre o medo humano de morrer, a necessidade da substituição de Deus e a importância das relações entre as pessoas. A obra apresenta conceitos filosóficos nem sempre claros para um não iniciado, mas a prosa é surpreendentemente fluida e clara.

O livro é fortemente influenciado pela ética da alteridade proposta pelo franco-lituano Emmanuel Levinas (1906-95), de quem Dardenne foi aluno na faculdade de filosofia em Louvain, em 1980. Para o belga, passado o luto pela "morte de Deus", o ser humano precisa desenvolver uma moral humana, não mais divina.

A relação com o outro se torna elemento central dessa moral, inspirada no pensamento levinasiano sobre um "eu" ético que aparece sob a injunção de um outro que clama por ser socorrido -uma demanda de não ser deixado abandonado. Como se, na falta de um Deus todo-poderoso, o "eu" (ou o "outro", dependendo do caso) assumisse atribuições "divinas".

Noções como solidariedade, simpatia e responsabilidade pelo outro são examinadas no livro, um excelente complemento aos filmes da dupla -ele esclarece e aprofunda questões só sugeridas nos extraordinários "A Promessa" (1996) e "O Filho" (2002) e nos vencedores da Palma de Ouro "Rosetta" (1999) e "A Criança" (2005).

Os irmãos Dardenne figuram hoje entre os cineastas mais influentes das últimas duas décadas: seu estilo seco, com sequências longas e a câmera colada no protagonista tem sido imitado ad infinitum (raramente com bons resultados, diga-se). Seus personagens são incansáveis guerreiros que lutam pela sobrevivência em um mundo pouco solidário. Mas, de repente, uma prova de humanidade, um toque de Graça, surge de onde menos se espera, e o ser humano já não se sente tão entregue à própria sorte.

Sobre o livro e seus pontos de contato com seus filmes, Luc Dardenne falou, por email, àFolha.
*

Folha - A ideia de "Sur l'Affaire Humaine" surgiu durante a criação do roteiro de "O Garoto da Bicicleta". Como aquela história o levou a um livro tão sério e filosófico?

Luc Dardenne - Nos dois anos de desenvolvimento do roteiro, quando estava obcecado por aquele garoto solitário, abandonado e violento, procurava palavras, olhares e gestos para ele projetando-me nele e conversando com frequência com meu irmão. Toda essa atividade me fechou em pensamentos que se ligavam a questões filosóficas que me interessam há muito tempo, como a solidão, a simpatia, a responsabilidade pelo outro, o assassinato -questões suscitadas por minhas leituras da obra de Levinas. Uma das questões que me perseguia era saber: por que o amor da personagem Samantha, uma mulher desconhecida, que surgiu por acaso, seria capaz de abrandar o sofrimento do garoto da bicicleta?


Logo no início, é evocado o célebre "Deus está morto", de Nietzsche. Mas 130 anos após o filósofo tê-lo "enterrado", Deus segue como uma espécie de obsessão entre os humanos - filósofos, inclusive. A declaração da morte teria tornado Deus ainda mais vivo?

Meu pequeno livro não é de forma alguma uma discussão sobre a morte ou sobrevivência de Deus. De certo modo, falo somente de mim, para quem Deus está morto; apenas faço ruminações, pensamentos obsessivos sobre a necessidade de consolação que tenho em mim, em minhas inervações, assim como o garoto da bicicleta, meu "alter ego". O que eu posso esperar é que esses pensamentos que me deixam obcecados sejam o sintoma de alguma coisa que ultrapassa a minha pessoa e movimente o pensamento dos outros.

Você sugere que Deus não está tão morto assim -há uma entidade próxima, mas terrena e humana: uma figura materna. Quem seria?

Nosso nascimento é indissociável de um pânico do que está de fora [do útero], um medo de morrer. Esse medo é abrandado quando entramos em contato com o amor infinito de um outro -uma mãe, um pai, biológico ou não- capaz de nos fazer sair de uma bolha imaginária e passar a amar o que está de fora. Necessitamos da existência de um "Deus" que nos dê um amor mais forte que a morte, uma segurança absoluta.

Tento pensar em como podemos conviver com essa necessidade, mas sem Deus -vivendo só com nosso elo com o outro humano que nos ama infinitamente e nos fez amar a vida. Mas, é claro, uma vida que não tem mais nenhuma garantia de eternidade, uma vida de mortal entre mortais.

Superado Deus, é preciso passar a uma próxima etapa: desenvolver uma moral antes humana que divina. A humanidade está ainda muito longe de chegar lá?

Questão para um adivinho, o que eu não sou. Podemos, ainda assim, dizer que o crescimento dos particularismos e das identidades religiosas hoje em dia pode nos fazer temer pelo pior. Cabe a nós resistir. O cinema pôde ser no passado uma terrível ferramenta de propaganda, de disseminação de preconceitos assassinos.

Mas ele pode também mostrar seres humanos complexos, singulares e, ao mesmo tempo, universais, que escapam a todos os preconceitos e que são capazes de sofrer pelas pessoas que também sofrem, que são capazes de ser felizes por pessoas que manifestam sua alegria de viver. O cinema se interessa pelo ser humano, qualquer que ele seja, essa é a humanidade de seu olhar.

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